sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Outros poemas (seção I)

   Aqui, estão reunidos alguns poemas do livro Pássaro Angular. Como já salientei (veja a postagem Pássaro Angular), o que caracteriza essa poesia é o choque entre sonho e realidade, epifania e cotidiano. Assim, suas fronteiras são tênues e imprecisas, podendo se esgarçar facilmente no "ato de semear estátuas" ou de olhar para o fundo de "urinóis suspensos no ar", por exemplo. Nessa atmosfera volúvel, nebulosa, a aparição de anjos e seres metafísicos, como a estátua "que amamenta as gaivotas do fim do mundo", é recorrente.



Vil semeadura 

O ato de semear estátuas
para lhes dar de beber
libertará os sonhos incautos,
a vertigem da nuvem, das roseiras.
Vidraças estilhaçadas,
ronco de vendavais e de chuvas,
losangos em pânico...
Para onde iremos?


O rapto da estátua  

Raptaram a estátua nua que amamenta
as gaivotas do fim do mundo.
Sim, raptaram-na...
Esperei-a no leito do rio, ansioso.
Uma ode cantada ao longe, no esteio dos ventos,
fez-me sonhá-la, subitamente.
Onde está ela? indaguei a nuvem. Onde?
Mas tudo no céu era mudo,
refletindo-se nas águas calmas.

Um grito escuro alastrou-se, todo silêncio.



Vértice da parede  

Urinóis suspensos no ar, imóveis.
Olho para o seu fundo e vejo a face obscura de Eva Brown,
ratazanas desfiguradas, colunas dóricas adensadas no gelo.
Volto ao saguão. 
No vértice da parede, um anjo decapitado.


Livro didático de R. Pombo   

Mamãe erguendo os braços
furiosa pedia que eu lesse
a História do Paraná, de Rocha Pombo,
porque a prova era difícil e a professora
mais ainda.

- Não quero!
- Quer sim!
- Não!
- Sim!

Então, eu corria pro quintal habitado
por monstros lotófagos comedores de sintaxes
e de prosódias.
Mas eu era amigo deles e a gente brincava,
sujava as mãos de terra e xingava o Rocha Pombo
por causa do seu livro maçante e por ter
nome de ave.
Mas logo vinha a mamãe pisando forte,
sacudindo o tamanco nas mãos,
botando pra fora os monstros de argila
e bloqueando o sol.

E a tarde escurecendo no fundo da sala;
o livro de Rocha Pombo sobre a mesa,
inexpugnável.


Virgem assimétrica  

A virgem assimétrica,
gestada no polígono,
faleceu por falta de oxigênio
nas veias, disse o médico legista.

Mais tarde, porém, descobriu-se
que ela não era virgem e que
as veias eram ocas, como
a cabeça.
Então, quiseram saber
como ela fizera amor,
já que não tinha face
nem sentia desejos.


Eva e Maria  

Unidas por um fio gênico, placentário,
uma pertencia à outra, desde o início
(simbiose cutânea que as tornava
mutuamente reféns,
cúmplices no bem e no mal).
Uma se chamava Eva; a outra, Maria.
Uma conhecia os fundamentos da terra,
a outra era versada nos princípios básicos
da água;
uma acometia as manhãs com moléstias
e rotavírus, a outra curava anjos enfermos
com seu toque feminino;
uma regava os campos com chuva ácida,
a outra colhia bromélias recém-nascidas
para replantá-las na Via Láctea;
uma açulava a discórdia e o preconceito,
a outra acolhia crianças órfãs e recitava
para as gaivotas os dez mandamentos;
uma desfazia a obra conjunta de mil artesãos,
a outra rodava seu denso vestido de madrepé-
rolas com losangos cáquis, feito a mão
pelos querubins.
Se uma beijava o céu, esfalfava as estrelas;
se a outra o fazia, vicejava as constelações.
Se uma beijava o mar, repelia as baleias e
os corais;
se a outra o fazia, fluidos e emanações delica-
das tocavam as profundezas marinhas.

Um dia, porém, ambas foram separadas.
Cansados de ver o bem coexistir com o mal,
arcanjos de madressilva
cortaram o fio umbilical.
Então, Eva vagou pelo mundo afora até comer da
árvore amarga dos demônios.
Maria, por sua vez, visitou os golfos e as baías até
se diluir no Oceano Índico, suavemente.



Quando eu era pequeno  

A víbora negra movediça
que rasteja no abismo
veio buscar-me quando eu era pequeno
e chorava.
Não fazia a lição de casa
e batia nos gatos que miavam nas poças
quando a mamãe,
erguendo as mãos pro céu,
me esconjurava.

O pesadelo anoitecia
quando, num átimo, um anjo encapuzado
me envolveu em suas asas galvânicas, 
ornadas de purpurina.






quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Pássaro Angular

   Com sua publicação prevista para o final deste ano, Pássaro Angular é a minha primeira obra poética. Nela, a influência das vertentes cubista e surrealista é marcante. Herdeira das vanguardas do início do século 20, sua matéria é o sonho, o delírio, a fantasia, a ilogicidade, o subjetivismo.
   Todo o livro se desdobra em torno da aproximação, ora maior, ora menor, entre sonho e realidade. Quase sempre, ambos se mesclam e confundem. Isso pode ser observado, por exemplo, nos poemas "Quando eu era pequeno" e "Ângela". No primeiro, é praticamente impossível distinguir o fato concreto, passado na infância, do pesadelo que o acompanha. Se existe de fato um limite que os separa, não se pode demarcá-lo com precisão. 
   Já no segundo poema, tem-se, num primeiro momento, a impressão de que o eu-lírico (voz que fala no poema) sonha ou delira. A própria descrição de Ângela - "olhos de crisálida", "voz hipotenusa", etc - nos leva a crer que ela não é uma mulher real, de carne e osso, mas uma entidade onírica, surreal. Porém, a dúvida é instilada nos quatro últimos versos, quando o eu-lírico diz que ela o deixou "sem derramar lágrimas", após ele ter vendido seus "manuais de geometria plana". Se, por um lado, essa constatação ajuda a reforçar a ideia de que Ângela é uma alucinação, por outro, nos faz ponderar sobre a sua provável concretude. Afinal, seria possível que o eu-lírico lhe conferisse atributos inumanos, extraídos do universo da geometria? Nesse caso, o que importa decifrar não é a natureza da mulher, mas o olhar muito peculiar daquele que fala no poema. Em síntese, não se pode esgotar uma ou outra possibilidade - ambas as vias de interpretação estão abertas e são exploráveis.
   Abaixo, seguem os dois poemas já citados.


Quando eu era pequeno 

A víbora negra movediça
que rasteja no abismo
veio buscar-me quando eu era pequeno
e chorava.
Não fazia a lição de casa
e batia nos gatos que miavam nas poças
quando a mamãe,
erguendo as mãos pro céu,
me esconjurava.

O pesadelo anoitecia
quando, num átimo, um anjo encapuzado
me envolveu em suas asas galvânicas,
ornadas de purpurina.

Ângela  

Ângela, quando te vi
pela primeira vez,
fiquei atordoado
e caí no chão, de joelhos,
para beber tua aura.

A fulgência do teu olhar de crisálida
penetrou-me, devassou minha carne,
devorou-a.
Não pude ver teu colo,
teu seio róseo que formava
um ângulo reto, inconcusso,
mas tua voz hipotenusa,
a simetria da tua face,
teu corpo congruente calculável a qualquer
distância, a partir de um ponto equidistante,
me fizeram amá-la.
Naquele instante,
ouvi réquiens e harpas líricas,
vi arcanjos descerem do céu,
o universo se contraindo para nos enfeixar linear-
mente, entre catetos e formas puras, fluidas.
Mas tu me deixaste de repente,
sem derramar lágrimas,
quando vendi para o sebo
os meus manuais de geometria plana.




Capa da obra Pássaro Angular (2017),
editora Bibliomundi, Rio de Janeiro

Outros poemas (seção I)

    Aqui, estão reunidos alguns poemas do livro  Pássaro Angular.  Como já salientei (veja a postagem  Pássaro Angular ), o que caracteriza...