Aqui, estão reunidos alguns poemas do livro Pássaro Angular. Como
já salientei (veja a postagem Pássaro Angular), o que caracteriza essa poesia é o choque entre sonho e realidade,
epifania e cotidiano. Assim, suas fronteiras são tênues e imprecisas, podendo se
esgarçar facilmente no "ato de semear estátuas" ou de olhar para o fundo de "urinóis suspensos no ar", por exemplo.
Nessa atmosfera volúvel, nebulosa, a aparição de anjos e seres metafísicos, como a estátua "que amamenta as gaivotas do fim do mundo", é recorrente.
Vil semeadura
O
ato de semear estátuas
para
lhes dar de beber
libertará
os sonhos incautos,
a
vertigem da nuvem, das roseiras.
Vidraças
estilhaçadas,
ronco
de vendavais e de chuvas,
losangos
em pânico...
Para
onde iremos?
O rapto da estátua
Raptaram
a estátua nua que amamenta
as
gaivotas do fim do mundo.
Sim,
raptaram-na...
Esperei-a
no leito do rio, ansioso.
Uma
ode cantada ao longe, no esteio dos ventos,
fez-me
sonhá-la, subitamente.
Onde
está ela? indaguei a nuvem. Onde?
Mas
tudo no céu era mudo,
refletindo-se
nas águas calmas.
Um
grito escuro alastrou-se, todo silêncio.
Vértice da parede
Urinóis
suspensos no ar, imóveis.
Olho
para o seu fundo e vejo a face obscura de Eva Brown,
ratazanas
desfiguradas, colunas dóricas adensadas no gelo.
Volto ao saguão.
No vértice da parede, um anjo decapitado.
Volto ao saguão.
No vértice da parede, um anjo decapitado.
Livro didático de R. Pombo
Mamãe
erguendo os braços
furiosa
pedia que eu lesse
a História do Paraná, de Rocha Pombo,
porque
a prova era difícil e a professora
mais
ainda.
-
Não quero!
-
Quer sim!
-
Não!
-
Sim!
Então,
eu corria pro quintal habitado
por
monstros lotófagos comedores de sintaxes
e de
prosódias.
Mas
eu era amigo deles e a gente brincava,
sujava
as mãos de terra e xingava o Rocha Pombo
por causa
do seu livro maçante e por ter
nome
de ave.
Mas
logo vinha a mamãe pisando forte,
sacudindo
o tamanco nas mãos,
botando
pra fora os monstros de argila
e
bloqueando o sol.
E a
tarde escurecendo no fundo da sala;
o
livro de Rocha Pombo sobre a mesa,
inexpugnável.
Virgem assimétrica
A
virgem assimétrica,
gestada
no polígono,
faleceu
por falta de oxigênio
nas
veias, disse o médico legista.
Mais
tarde, porém, descobriu-se
que
ela não era virgem e que
as
veias eram ocas, como
a
cabeça.
Então,
quiseram saber
como
ela fizera amor,
já
que não tinha face
nem sentia desejos.
nem sentia desejos.
Eva e Maria
Unidas
por um fio gênico, placentário,
uma
pertencia à outra, desde o início
(simbiose
cutânea que as tornava
mutuamente
reféns,
cúmplices
no bem e no mal).
Uma
se chamava Eva; a outra, Maria.
Uma
conhecia os fundamentos da terra,
a
outra era versada nos princípios básicos
da
água;
uma
acometia as manhãs com moléstias
e
rotavírus, a outra curava anjos enfermos
com
seu toque feminino;
uma
regava os campos com chuva ácida,
a
outra colhia bromélias recém-nascidas
para
replantá-las na Via Láctea;
uma
açulava a discórdia e o preconceito,
a
outra acolhia crianças órfãs e recitava
para
as gaivotas os dez mandamentos;
uma
desfazia a obra conjunta de mil artesãos,
a outra
rodava seu denso vestido de madrepé-
rolas
com losangos cáquis, feito a mão
pelos
querubins.
Se
uma beijava o céu, esfalfava as estrelas;
se a
outra o fazia, vicejava as constelações.
Se
uma beijava o mar, repelia as baleias e
os
corais;
se a
outra o fazia, fluidos e emanações delica-
das
tocavam as profundezas marinhas.
Um
dia, porém, ambas foram separadas.
Cansados
de ver o bem coexistir com o mal,
arcanjos de madressilva
cortaram o fio umbilical.
Então,
Eva vagou pelo mundo afora até comer da
árvore
amarga dos demônios.
Maria,
por sua vez, visitou os golfos e as baías até
se
diluir no Oceano Índico, suavemente.
Quando eu era pequeno
A
víbora negra movediça
que
rasteja no abismo
veio
buscar-me quando eu era pequeno
e
chorava.
Não
fazia a lição de casa
e
batia nos gatos que miavam nas poças
quando
a mamãe,
erguendo
as mãos pro céu,
me
esconjurava.
O
pesadelo anoitecia
quando,
num átimo, um anjo encapuzado
me
envolveu em suas asas galvânicas,
ornadas de purpurina.
ornadas de purpurina.