Com sua publicação prevista para o final deste ano, Pássaro
Angular é a minha primeira obra poética. Nela, a influência das
vertentes cubista e surrealista é marcante. Herdeira das vanguardas do início
do século 20, sua matéria é o sonho, o delírio, a fantasia, a ilogicidade, o
subjetivismo.
Todo o livro se desdobra em torno da aproximação, ora
maior, ora menor, entre sonho e realidade. Quase sempre, ambos se mesclam e
confundem. Isso pode ser observado, por exemplo, nos poemas "Quando eu era
pequeno" e "Ângela". No primeiro, é praticamente impossível
distinguir o fato concreto, passado na infância, do pesadelo que o acompanha.
Se existe de fato um limite que os separa, não se pode demarcá-lo com
precisão.
Já no segundo poema, tem-se, num primeiro momento, a
impressão de que o eu-lírico (voz que fala no poema) sonha ou delira. A própria
descrição de Ângela - "olhos de crisálida", "voz
hipotenusa", etc - nos leva a crer que ela não é uma mulher real, de carne
e osso, mas uma entidade onírica, surreal. Porém, a dúvida é instilada nos
quatro últimos versos, quando o eu-lírico diz que ela o deixou "sem
derramar lágrimas", após ele ter vendido seus "manuais de geometria
plana". Se, por um lado, essa constatação ajuda a reforçar a ideia de que
Ângela é uma alucinação, por outro, nos faz ponderar sobre a sua provável
concretude. Afinal, seria possível que o eu-lírico lhe conferisse atributos
inumanos, extraídos do universo da geometria? Nesse caso, o que importa decifrar não é a natureza da mulher, mas o olhar muito peculiar daquele que
fala no poema. Em síntese, não se pode esgotar uma ou outra possibilidade -
ambas as vias de interpretação estão abertas e são exploráveis.
Abaixo, seguem os dois poemas já citados.
Quando eu era pequeno
A
víbora negra movediça
que
rasteja no abismo
veio
buscar-me quando eu era pequeno
e
chorava.
Não
fazia a lição de casa
e
batia nos gatos que miavam nas poças
quando
a mamãe,
erguendo
as mãos pro céu,
me
esconjurava.
O
pesadelo anoitecia
quando,
num átimo, um anjo encapuzado
me
envolveu em suas asas galvânicas,
ornadas
de purpurina.
Ângela
Ângela, quando te vi
pela primeira vez,
fiquei atordoado
e caí no chão, de joelhos,
para beber tua aura.
A fulgência do teu olhar de crisálida
penetrou-me, devassou minha carne,
devorou-a.
Não pude ver teu colo,
teu seio róseo que formava
um ângulo reto, inconcusso,
mas tua voz hipotenusa,
a simetria da tua face,
teu corpo congruente calculável a qualquer
distância, a partir de um ponto equidistante,
me fizeram amá-la.
Naquele instante,
ouvi réquiens e harpas líricas,
vi arcanjos descerem do céu,
o universo se contraindo para nos enfeixar linear-
mente, entre catetos e formas puras, fluidas.
Mas tu me deixaste de repente,
sem derramar lágrimas,
quando vendi para o sebo
os meus manuais de geometria plana.
Capa da obra Pássaro Angular (2017),
editora Bibliomundi, Rio de Janeiro
editora Bibliomundi, Rio de Janeiro
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