quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Pássaro Angular

   Com sua publicação prevista para o final deste ano, Pássaro Angular é a minha primeira obra poética. Nela, a influência das vertentes cubista e surrealista é marcante. Herdeira das vanguardas do início do século 20, sua matéria é o sonho, o delírio, a fantasia, a ilogicidade, o subjetivismo.
   Todo o livro se desdobra em torno da aproximação, ora maior, ora menor, entre sonho e realidade. Quase sempre, ambos se mesclam e confundem. Isso pode ser observado, por exemplo, nos poemas "Quando eu era pequeno" e "Ângela". No primeiro, é praticamente impossível distinguir o fato concreto, passado na infância, do pesadelo que o acompanha. Se existe de fato um limite que os separa, não se pode demarcá-lo com precisão. 
   Já no segundo poema, tem-se, num primeiro momento, a impressão de que o eu-lírico (voz que fala no poema) sonha ou delira. A própria descrição de Ângela - "olhos de crisálida", "voz hipotenusa", etc - nos leva a crer que ela não é uma mulher real, de carne e osso, mas uma entidade onírica, surreal. Porém, a dúvida é instilada nos quatro últimos versos, quando o eu-lírico diz que ela o deixou "sem derramar lágrimas", após ele ter vendido seus "manuais de geometria plana". Se, por um lado, essa constatação ajuda a reforçar a ideia de que Ângela é uma alucinação, por outro, nos faz ponderar sobre a sua provável concretude. Afinal, seria possível que o eu-lírico lhe conferisse atributos inumanos, extraídos do universo da geometria? Nesse caso, o que importa decifrar não é a natureza da mulher, mas o olhar muito peculiar daquele que fala no poema. Em síntese, não se pode esgotar uma ou outra possibilidade - ambas as vias de interpretação estão abertas e são exploráveis.
   Abaixo, seguem os dois poemas já citados.


Quando eu era pequeno 

A víbora negra movediça
que rasteja no abismo
veio buscar-me quando eu era pequeno
e chorava.
Não fazia a lição de casa
e batia nos gatos que miavam nas poças
quando a mamãe,
erguendo as mãos pro céu,
me esconjurava.

O pesadelo anoitecia
quando, num átimo, um anjo encapuzado
me envolveu em suas asas galvânicas,
ornadas de purpurina.

Ângela  

Ângela, quando te vi
pela primeira vez,
fiquei atordoado
e caí no chão, de joelhos,
para beber tua aura.

A fulgência do teu olhar de crisálida
penetrou-me, devassou minha carne,
devorou-a.
Não pude ver teu colo,
teu seio róseo que formava
um ângulo reto, inconcusso,
mas tua voz hipotenusa,
a simetria da tua face,
teu corpo congruente calculável a qualquer
distância, a partir de um ponto equidistante,
me fizeram amá-la.
Naquele instante,
ouvi réquiens e harpas líricas,
vi arcanjos descerem do céu,
o universo se contraindo para nos enfeixar linear-
mente, entre catetos e formas puras, fluidas.
Mas tu me deixaste de repente,
sem derramar lágrimas,
quando vendi para o sebo
os meus manuais de geometria plana.




Capa da obra Pássaro Angular (2017),
editora Bibliomundi, Rio de Janeiro

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